Terminei de ler A Garota na Teia de Aranha, o tão esperado lançamento de David Lagercrantz e que marca a continuação da série Millenium, de Stieg Larsson.
A Millenium, revista criada por Mikael Blomkvist e que se tornou referência no jornalismo investigativo da Suécia, não está bem das pernas. Em crise financeira, viu parte de suas ações serem adquiridas pelo maior grupo de mídia do país, que inicialmente disse que queria apenas investir na revista, mas que meses depois se sentiu na liberdade de interferir no conteúdo da publicação. Para conter isso Mikael precisa urgentemente de um novo furo jornalístico, o que, a julgar pelo vácuo criativo no qual a redação da revista se encontra no momento, está longe de acontecer. Mas tudo muda depois de uma ligação de um jovem que recomenda a Mikael que procure pelo renomado professor Franz Balden, uma das maiores referências em tecnologia do mundo mas um homem completamente confuso em sua vida pessoal. Acredita-se que Balder tenha informações importantíssimas sobre novas descobertas científicas e tecnológicas sobre inteligência artificial capazes de mudar os rumos do mundo, descobertas essas que estariam em grande risco de cair em mãos erradas. Porém Mikael não consegue falar com o professor antes de uma tragédia imprevisível acontecer, que mudou não só o rumo das coisas, como trás à luz uma rede de traições, venda de informações importantes, com a participação de nomes do alto escalão da NSA, a agência de segurança americana. Boa parte dessas informações podres sobre a NSA só vieram à luz após a rede da agência ser misteriosamente hackeada, mesmo com todos seus altíssimos critérios de segurança. O hacker, ou melhor, a hacker, é alguém bastante conhecida de Mikael. Sim, é ela mesma: Lisbeth Salander. Mas, mais do que descobrir intrigas entre funcionários, Lisbeth torna-se alvo de uma rede de hackers, a Spiders, que tem objetivos bem específicos e vê seus planos frustados pela ação da jovem hacker que parece cruzar para sempre o caminho da grande líder dos Spiders, a jovem e incrivelmente bela Kira. Mikael e Lisbeth, apesar de em pontos diferentes, se veem dentro da mesma teia, e precisam urgentemente encontrar um modo de sair e desmontar a atuação poderosa dos Spiders antes que seja tarde.
O livro foi lançado após uma onda de expectativa em todo o mundo. Morto em 2007, Stieg Larsson sequer viu publicados seus primeiros três livros, Os Homens que Não Amavam as Mulheres, A Menina que Brincava com Fogo e A Rainha do Castelo de Ar, todos eles best-sellers em todo o mundo e que tornaram conhecidos a dupla de protagonistas Mikael Blomkvist e Lisbeth Salander, ele o jornalista investigativo que tem como missão trazer a público a sujeira do mundo político e empresarial sueco, e ela a típica personificação do antiheroi que tem sede de resolver problemas e corrigir injustiças, mas nem sempre das formas mais éticas ou aceitáveis.
A história é muito empolgante, bem ao estilo dos romances policiais suecos. Os personagens são os mesmos: o inspetor Jan Bublanski "bubolha", a investigadora Sonja Mondig, o questionável procurador Richard Ekström, a companheira e amante de Mikael, Erika Berger, além da redação da revista Millenium. Mas o enredo é contagiante. Novos informações surgem a todo momento e quando você pensa que descobriu algo, vem um detalhe e muda tudo. Mas, diferente de Stieg Larsson, David Lagercrantz dá ao leitor um poder quase onisciente. Em boa parte da história os personagens vão fundo par descobrir fatos que o leitor já conhece há um bom tempo.
Mas há um outro lado. Se o estilo de escrita de Stieg Larsson é totalmente diferente de David Lagercrantz, o que é perfeitamente natural e esperado (e isso fica nítido em vários momentos no livro), por outro lado o novo autor pareceu ter tanto ouro nas mãos que em vários momentos não soube como usá-lo, algo compreensível se pensarmos que David Lagercrantz é um autor sem nenhuma experiência em romances policiais e que recebe a missão de escrever, como seu romance inicial, um livro do nível da série Millenium. A história fica confusa em alguns pontos (os Spiders mereciam uma abordagem muito mais profunda do que a que receberam, já que eles dão nome ao livro; falo sobre isso depois), superficial em outros, ou inexplicável em algumas situações, além da total mudança na personalidade de alguns dos personagens. A principal, Lisbeth Salander, quase se despersonaliza em alguns momentos. O autor teve tanta preocupação em retratar Lisbeth como alguém "fora do comum" que em alguns momentos na história só faltou dizer que ela tinha superpoderes! Em determinados momentos pensei que Lisbeth iria voar! A Lisbeth revoltada e estranha de Stieg Larsson virou uma personagem caricata, com uma força fora do normal que "explica" algumas atuações completamente estranhas dela na história. Mikael está, na nova história, mais apático do que o normal. Tudo bem que o enredo explica isso, mas mesmo assim não consigo ver o "super-Blomkvist" (título que ele odeia) retratado da forma como Lagercrantz o retrata algumas vezes.
Mas há algumas sacadas geniais no livro. Não sei se essas sacadas fazem parte do rascunho que Stieg Larsson deixou escrito antes de morrer, mas são momentos na história que casam perfeitamente com os demais livros. A ideia de inteligência artificial e os perigos de isso cair em mãos erradas, os Spiders e sua líder misteriosa, que encerra um ciclo importante das histórias anteriores - a família conturbada de Lisbeth.
Só um detalhe, que não vi escrito em outros lugares, mas que percebi nitidamente conforma a história transcorria: a tradução do título para o português está errada. O título em inglês, The Girl in the Spider's Web não quer dizer A Garota na Teia de Aranha - ou A Rapariga Apanhada na Teia de Aranha, em Portugal (sim, o título lá é esse!). Bom, numa tradução literal quer dizer isso, mesmo. Mas no livro, "Spider's web" tem uma outra conotação, muito mais significativa que o literal "teia de aranha". Numa sugestão arriscada minha, penso que uma tradução mais fiel a história seria A Garota que Caiu na Rede dos Spiders, ou algo do tipo.
Enfim, para os fãs da série Millenium a história é bastante diferente do original, mas tão surpreendente quanto os livros anteriores. Não tem como não ler e não esperar a continuação que o autor já disse que haverá - e que o final deixa claro que existirá.